SOBRE O FILME E LIVRO O SEGREDO

De José Carlos Martins

O filme O Segredo, que já vendeu mais de um milhão de cópias de DVDs e mais do mesmo número em livros, se apresenta como um prato cheio ao analista crítico do discurso (que busca o que vai por trás dos textos, suas persuasões, induções, apelos, opressões etc.).
Em meu ponto de vista, o filme apresenta simploriamente um positivismo filosófico-religioso pautado na factualidade e asserção (não há espaço para hipóteses, possibilidades, como se a realidade da vida fosse absolutamente como retratada no filme - possibilidades e hipóteses passariam idéias de incerteza, as quais interfeririam na decisão de o leitor ou espectador tomar o proposto como verdade) que procura convencer os espectadores de que a solução para tudo está na forma como vemos as coisas. Se as virmos positivamente, isto é, a partir de uma mentalização imagética que projete o que queremos (seja carro, casa etc.) ou do que queremos modificar em termos de comportamento (alimentar, relacional) alcançaremos sem dúvida alguma - é a lei da atração. O Segredo é uma suposta lei de atração presente no universo que envolve a todos. Quem pensa em coisas boas, as atrairá, quem em coisas ruins, será alcançado por elas.
A revista Newsweek diz o seguinte sobre O Segredo (a minha tradução vem logo abaixo em itálico) (http://www.msnbc.msn.com/id/17314883/site/newsweek/):

On an ethical level, "The Secret" appears deplorable. It concerns itself almost entirely with a narrow range of middle-class concerns—houses, cars and vacations, followed by health and relationships, with the rest of humanity a very distant sixth. Even some of the major figures in the film confess to uneasiness with its relentless materialism. "I love 'The Secret' but I also think it's missing a couple things," says "metaphysician" Joe Vitale.

Em o nível ético, “O Segredo” é deplorável. Lida quase que integralmente com as preocupações da classe média – casas, carros e férias, seguidas por saúde e relacionamentos, deixando à distância aspectos de humanidade. Até mesmo algumas das principais figuras do filme admitem desconforto com o acentuado materialismo do filme. “Eu adoro ‘O Segredo’ mas eu acho que lhe falta uma série de coisas’, diz o metafísico JoeVitale.

A característica factual e assertiva do filme também pode ser verificada no próprio sítio de “O Segredo” (http://thesecret.tv/home.html):

This is The Secret to everything ... the secret to unlimited joy, health, money, relationships, love, youth: everything you have ever wanted.

Este é O Segredo de todas as coisas … o segredo para a alegria ilimitada, saúde, dinheiro, relacionamentos, amor, juventude: tudo o que você quiser.

In this astonishing program are ALL the resources you will ever need to understand and live The Secret. For the first time in history, the world's leading scientists, authors, and philosophers will reveal The Secret that utterly transformed the lives of every person who ever knew it ... Plato, Newton, Carnegie, Beethoven, Shakespeare, Einstein.

Neste tremendo programa estão TODOS os recursos que você sempre precisará para entender e viver O Segredo. Pela primeira vez na história, os melhores cientistas, autores e filósofos do mundo revelarão O Segredo que transformou as vidas de todas as pessoas que o conheceram... Platão, Newton, Carnegie, Beethoven, Shakespeare, Einstein.

Now YOU will know The Secret.

Agora VOCÊ conhecerá O Segredo.

And it will change your life forever.

Ele mudará a sua vida para sempre


Note as expressões da tradução do texto do sítio (em itálico):

Este é O Segredo (presente do indicativo, fato real).
estão TODOS os recursos (presente do indicativo, fato real).
Pela primeira vez na história (frase de efeito para impressionar, como se tantos outros já não disseram coisas tão iguais. Paul Young Cho, pastor evangélico da Coréia do Sul, há mais de 20 anos atrás, já falava em criar imagem do que se desejasse para que pela “fé em Jesus” o imaginado viesse a se materializar).
Os melhores cientistas, autores e filósofos do mundo (tentativa de validar o discurso do filme, apresentando supostas autoridades que receberam a classificação de os melhores não se sabe por quais critérios).
Platão, Newton ... (uso de personagens da história para validar o proposto como se elas tivessem alcançado o que alcançaram seguindo os passos de O Segredo – isto é estratégia de persuasão pelo impacto do testemunho; são histórias que normalmente se apresentam descontextualizadas).

O eu-posso-tudo-o-que-quiser norteia o “plot” do filme O Segredo. Para fortalecer esta idéia, exemplos de personagens da história mundial são apresentados, dentre os quais Martin Luther King, Beethoven, Abraão Lincoln, Platão ...
A presença de Abraão Lincoln no imagético do filme, a meu ver, é descontextualizada, visto que Lincoln era um dos chamados crentes em Deus e de Deus dependia, era homem de dobrar os joelhos para orar e pedir a direção de Deus para as suas decisões, atitude de subserviência e humildade não compatíveis com a filosofia positivista, que enfatiza o homem como cerne do que acontece à sua volta. Perdeu eleições antes de chegar à presidência, por muitos foi criticado; na sua época, o país estava dividido entre aqueles que o apoiavam e os que queriam o seu fim. Foi reconhecido como um grande líder somente após a sua morte.
O mesmo ocorre com Martin Luther king, que era pastor evangélico e ativista em prol da igualdade racial. Também era homem que tinha como crença a dependência na vontade de Deus. Só conseguiu o que conseguiu com esforço e luta, e não com a simplicidade de imagens mentais.
Em relação a Martin Luther King, a revista Newsweek fala:

Martin Luther King Jr. is enlisted as author of an epigram about taking a staircase one step at a time. King certainly could visualize. But he also knew better than to sit back and wait for the law of attraction to send down justice; he went out and worked for it. And there's no secret to that.

Martin Luther King Jr. é apresentado como autor de um epigrama acerca do subir uma escada degrau por degrau. King certamente era capaz de visualizar. Porém o seu conhecimento ia além de sentar-se e esperar que a lei da atração trouxesse justiça; ele foi ao trabalho pela justiça. Não há segredo nisto.

Penso que o que esses homens alcançaram foi fruto de muita luta, dor, aflição, confiança no Deus em quem criam, e perseverança (o que é mais do que mero positivismo imagético), porque crer sem perseverar é receita à desistência.
O filme, ainda, num ensino, a meu ver, de egoísmo, individualismo e preconceito, sugere que não devemos olhar (literalmente) para coisas indesejáveis. Pessoas gordas não deveriam ser olhadas, pois, pela lei da atração, atrairíamos a gordura para nós. Isso tem cara de crendice popular, como aquela que mulher grávida deve olhar para crianças bonitas para que o bebê nasça bonito: “Não olhe pra sapo, vai nascer um filho feio!”
Será que o segredo de O Segredo não está nas cifras que a produção busca e tem alcançado, o que se dá mais pela inquietude da alma humana do que por verdades que contenha.

Para a psicóloga Carol Kauffman da Universidade de Harvard, “basicamente, é a teoria do caos... Eu penso que você, na verdade, não atrai coisas para você mesma. Mas se você está profundamente aberta a oportunidade, então quando eventos ambíguos ocorrem, você os percebe. Eu acho que o que o pensamento positivo faz, é aumentar a sua consciência para possibilidades que conseqüentemente acabam chamando a sua atenção” (Newsweek Magazine - minha tradução).
Byrne, uma das proponentes de O Segredo, que aparece falando no filme, em resposta a uma pergunta sobre o massacre de Ruanda diz:

"If we are in fear, if we're feeling in our lives that we're victims and feeling powerless, then we are on a frequency of attracting those things to us ... totally unconsciously, totally innocently [...]"

Se nós estamos com medo, se estamos sentindo que somos vítimas e nos sentindo impotentes, então estamos na freqüência de atração daquelas coisas ... totalmente inconscientes, inocentemente ...

Sendo assim, se pensarmos no Tsunami que atingiu a Ásia em 2004, teríamos milhares e milhares de pessoas atraindo aquela tragédia toda?
Se O Segredo é o segredo, por que vendê-lo? Quantas pessoas poderiam ter suas vidas mudadas, salvas de problemas e destruição pelo conhecimento deste “segredo”? Não é lei do universo este segredo? Se é do universo, não é de ninguém. Por que tanta promoção para vender os livros e os DVDs desta “verdade” que não pertence a ninguém? Aqui me vem à mente a palavra do Evangelho que diz que o que recebemos de graça, de graça devemos dar.
Eu prefiro o segredo de Jesus Cristo, que não é segredo algum; é muito claro, nada que ninguém não possa entender; é raso o suficiente para que todos possam alcançá-lo e pegá-lo para si. Está aberto a quem quiser. Não aquele vendido, à semelhança de O Segredo, pelos “tele-evangelistas e ministros do evangelho” das promessas dos carros novos, casas novas, dos empregos de ponta, pregadores de um outro evangelho, o da prosperidade, mas que não são do Evangelho.
Quem critica esses pregadores, e eu não discordo que se critique tais falácias, e absorve facilmente O Segredo como sendo algo incrível de bom, deveria parar de criticá-los, pois o segredo não traz nada diferente, a fórmula do palpável e tangível é a mesma: a simplicidade e facilidade com que se pode conseguir o que se quiser pagando pelo 'know-how' do sucesso.
Volto a dizer, prefiro o Evangelho de Jesus que é aquele do “buscai em primeiro lugar o reino dos céus e a sua justiça e as demais coisas vos serão acrescentadas”. Jesus está dizendo que ninguém vai deixar de ter (talvez não fique rico) se a vida for pautada, do fundo da alma, do coração, por aquilo que vem de cima, aquilo que Ele ensinou, que é não viver para as coisas da terra somente. O resto é o resto. O resto é que tem levado pessoas inteligentes a absorverem discursos persuasivos e apelativos de livros e filmes, como O Segredo, que engordam as contas de quem os vendem; discursos que revelam a alma vazia de uma grande parte da sociedade moderna.
Para muitas pessoas, a falta de percepção de quem são e a falta de percepção do valor da sua existência para quem as rodeia, leva à percepção de si mesmas primeiramente pelo palpável, pelo material, que se manifesta em posses, para onde se pode viajar, o que se pode vestir, comer... e estar sempre numa disputa pelo melhor e ser o melhor. Esse individualismo tende a se manifestar em materialismo e na esquisitice do abandono da compaixão, da misericórdia. Pouco tempo sobra para as coisas da alma quando só se pensa no "sucesso".
Você pode tudo o que você quiser, é a proposta de O Segredo. Falácia. Qual dos proponentes de O Segredo pode fazer com que um de seus cabelos brancos volte a ser o que era antes, sem o uso de tinta? Qual deles seria capaz de acrescentar um palmo a sua altura que não fosse por intervenção da ciência? Qual deles poderia paralisar o tempo para que um só vinco de ruga deixasse de aparecer à face, sem que o bisturi ou o botox estivesse presente?
Querer dizer que o ser humano pode tudo, que não há limites para o tudo, só pode ser objeto de venda de livros e filmes, o que a Newsweek expressa na frase:

But this 'new thought' may just be new marketing.

Mas este ‘novo pensamento’ pode ser apenas um novo marketing.

As pessoas são muito mais pessoas quando elas naturalmente e espontaneamente procuram não ser; essa naturalidade de ser, faz delas pessoas que são e conseqüentemente as conquistas as seguirão.


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